SUS
ignora 13 milhões de pacientes com doenças raras em todo o país
Guilherme
Amado
Desde a
véspera, Alisson teimava com a mãe, Gleice Machado, que o levasse à cidade
vizinha para comprar um estribo, a última peça que faltava para completar o
arreio do cavalo. O garoto insistia, o sol de cinco da tarde batia tímido na
pequena mercearia da família, e a cabeça da mãe ia longe, aflita. Como o menino
de 10 anos que, dias antes, havia retirado mais dois cânceres da pele poderia
andar a cavalo sob o sol? Habilidoso, Alisson maquinava uma saída, alimentando
o sonho de ser peão, comum entre meninos do noroeste goiano, onde o cerrado
rasteiro é um convite às cavalgadas.
— Vou ser o
cavaleiro da madrugada — sorriu, iluminando ainda mais a fisionomia ruiva e
cheia de sardas.
Alisson e
outros 19 moradores do Recanto das Araras — um povoado da pequena Faina,
distante 250 quilômetros de Goiânia — têm xeroderma pigmentoso, doença rara que
atinge uma pessoa em 1 milhão. Hipersensíveis à luz, eles têm mil vezes mais
chance de desenvolver câncer de pele do que uma pessoa normal.
Deide, à
esquerda, e Djalma moram desde que nasceram no vilarejo: só podem pegar sol
antes das 10h ou depois das 16hFoto: Ailton de Freitas / Extra
Nem todas
as 30 famílias do vilarejo têm pessoas com xeroderma, mas a estimativa é de que
todos sejam portadores do gene causador da doença. O sol arde, maltrata,
machuca, deforma. O drama maior, porém, está na maneira como o poder público
lida com eles. Têm de peregrinar pelo país, de cirurgia em cirurgia, dependendo
de doações de filtro solar e da boa vontade de médicos para o tratamento.
Mas os
moradores de Faina não estão sós. A exemplo deles, milhões de outros
brasileiros são portadores de enfermidades raras, a maioria de origem genética e
incurável, de nomes complicados, como mucopolissacaridose, neurofibromatose e
epidermólise.
Gleice
Machado e seu filho Alisson Machado: o menino tem xeroderma diagnosticado desde
os 2 anos Foto: Ailton de Freitas / Agência O Globo
Não menos
complexa é a situação que enfrentam. A Organização Mundial da Saúde define como
rara a doença que atinge até 1,3 a cada 2.000 pessoas. Por serem pouco
frequentes, são desconhecidas dos médicos. O diagnóstico depende muitas vezes
de testes genéticos, caros e fora do rol de exames cobertos pelo Sistema Único
da Saúde (SUS). O quadro se complica diante da falta de geneticistas — são
apenas 156 no país — e da limitação do SUS, que só tem protocolos para tratar
25 das sete mil doenças raras identificadas. Invisíveis, muitos optam por se
esconder, fugindo do preconceito.
Hoje com 38
anos, o sorveteiro Djalma Antônio Jardim convive desde os 9 com as cirurgias
para tirar cânceres de pele. De lá para cá, foram mais de 60, tantas que não
sabe precisar. Aos 19, fez a mais agressiva, quando retirou um olho. Não entra
em salas de cirurgia há três.
— Já perdi
um olho, o nariz, a metade do rosto, os dentes, os lábios. Agora só me resta a
esperança.
Usando uma
prótese em grande parte do rosto, Djalma conta que é um dos poucos que têm o
xeroderma e cujos pais — até onde se sabe — não são parentes entre si. O
biólogo Carlos Menck, o principal pesquisador da doença no país, explica que o
isolamento geográfico de Faina propicia casamentos consaguíneos, quase sempre
entre primos, o que aumenta o risco de mutações genéticas.
Menck
recolheu amostras de saliva e sangue de 150 moradores da região e pretende, em
um ano, responder quem apenas é portador do gene e quem tem a doença — é
possível ter o gene e não desenvolver o xeroderma.
Baseado no
relato de uma moradora morta há dois anos, aos 102, Menck acredita que o gene
defeituoso é de origem portuguesa. Ela contava que os Freire, os Gonçalves e os
Jardim chegaram ali em 1705, vindo de Portugal.
Foto:
Infográfico: Kamilla Pavão
Fruto de um
casamento entre primos, Deide Freire também carrega no rosto as cicatrizes da
mutação. Já viajou pelo país em busca de tratamento. Hoje, fala com
dificuldade, brigando com a prótese ainda grudada por durepoxi — não consegue
marcar no SUS uma cirurgia para fixá-la em definitivo.
A partir deste
domingo, o EXTRA conta a história de famílias com diferentes doenças raras, de
quatro estados do país. Pessoas que, a exemplo de Alisson, Deide, Djalma e
Gleice, lutam para conseguir atendimento, e que provam a cada dia que suas
vidas, mais do que raras, são extraordinárias.
TOMADO DE
EXTRA DE BRASIL
Leia mais: http://extra.globo.com/noticias/brasil/sus-ignora-13-milhoes-de-pacientes-com-doencas-raras-em-todo-pais-8939015.html#ixzz2YMpmubNE
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